Fui incorporado em 8 de outubro de 1973, no Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, no quartel da Escola Prática de Infantaria, instalado no Convento de Mafra. Recebi o número mecanográfico de identificação 05528166. Ninguém a partir daí nos tratava pelo nosso nome, apenas pelo número de identificação. Apenas a partir da nossa passagem a oficial tínhamos o direito de ter o nosso nome na farda nº3.
Curiosamente ou talvez não, já dentro da semana do fim do 1º ciclo do Curso do COM (22 de Dezembro de 1973), a 19 de Dezembro fomos surpreendidos por uma ordem de desarme completo imediato dos soldados cadetes, a absoluta maioria do contingente da Escola Prática de Infantaria de Mafra – faço nota que durante toda a semana detínhamos na nossa posse a espingarda G3 que levantávamos no armeiro nas 2ªs feiras, antes das 8 horas, e depositávamos antes da parada da ordem do fim de semana, às 16 horas das 6ªs feiras.
Pois bem, nesse dia 19 de Dezembro de 1973, em que as escolas práticas de instrução, sendo os quartéis mais bem armados, foram todas desarmadas, nós instruendos cadetes dos 1º e 2º ciclos do COM e também os do curso de capitães milicianos – quase todos universitários e mesmo alguns formados – fomos mandados formar em ordem unida, na enorme parada posterior do convento-quartel de Mafra. Ali ficámos umas duas horas, ou mais, sem armas, até que o segundo-comandante tenente-coronel de Infantaria Jasmim de Freitas, rodeado por um pelotão de segurança fortemente armado com FBP´s, discursou às tropas em tom ameaçador, exigindo-lhes disciplina, num discurso agressivo que terminou pelo mando de recolher às casernas e depois sucessivamente ordenar a saída dos cadetes para fim de semana. Jasmim de Freitas, madeirense, veio-se depois a saber que era spinolista e no 25 de Abril aderira ao MFA. Nesse dia 19 de Dezembro comandante da unidade, Brigadeiro Henriques da Silva (açoriano) não apareceu. A “brigada do reumático” tinha feito juramento de fidelidade a Américo Tomás e Kaúlza de Arriaga, vindo de Moçambique, acusado dos massacres de Wiriamu, diz-se, tentou concretizar um golpe militar de feição extremista de direita, apoiando o regime caduco com Marcelo Caetano de um lado e o Américo Tomás do outro. Nunca se soube a quem estaria fiel.
Este foi um prenúncio de que se estavam a passar “coisas” com e no poder de então, depois do célebre livro de Spínola, Portugal e o Futuro. O 19 de Dezembro acabou por ser muito pouco falado ou estudado, até hoje. Que havia uma fortíssima divisão no seio das Forças Armadas era conhecido. A sua densidade e extensão ainda hoje se conhece pouco. Aliás, a costumeira NEP – norma de execução permanente – relativamente ao Juramento de Bandeira, que era uma grande festa no final do IVº COM, o meu, iniciado em Outubro e finalizado sempre três dias antes do Natal, não se realizou. Todos nós ficámos sem perceber o porquê. A razão concreta. Circulavam muitos boatos. Algo estaria para acontecer. Marcelo Caetano dirigiu-se na sua “conversa de família” já com ar abatido.
Fundamental dizer que nós, universitários, éramos muito politizados. Sabíamos bem o que nos estava reservado e nunca estivemos ao lado do regime, mesmo muitos que depois foram críticos do 25 de Abril e até se manifestaram pró-regime derrubado.
No meu pelotão (3º) e companhia (3ª) quase todos de “velhos” – foram meus camaradas de armas o Historiador Jorge Custódio – que aqui alguns conhecem – o Professor Geógrafo Jorge Gaspar, o Professor Cancela de Abreu, da EU, um célebre que iniciou com Torres Couto a UGT (falecido novo e infelizmente não recordo o nome) …. E muitos outros de que me lembro, mas não faz caso aqui referir. Guardei uma lista de todos que tenho, mas ainda não encontrei. Éramos muito unidos. Muito camaradas uns dos outros, em Mafra. Já no ciclo de especialidade seguinte essa camaradagem era muito restrita. Competia-se para se não ser mobilizado para África. Sobre ela falo já a seguir.
Qualificado para a Especialidade de Intendência, eu que era arquiteto, consegui passar para os serviços auxiliares, mas essa condição em nada me serviu a não ser não ter ficado como carne para canhão em infantaria. Muito devo a minha mãe que se movimentou junto do então seu chefe, Mário de Figueiredo, presidente da Assembleia Nacional e da Junta Nacional de Educação, que minha saudosa mãe secretariava. Não tenho nenhum pejo em revelar esta situação, mas tive de me bater contra tudo o que ela podia comportar contra mim depois.
Assim iniciei o 2º Ciclo do COM, no quartel da EPAM – Escola Prática de Administração Militar, na Alameda das Linhas de Torres, curiosamente comandada pelo Coronel Batista (não lembro agora o seu primeiro nome, mas foi o homem que “raptou” Eusébio para o Benfica, no aeroporto, quando ele estava destinado ao Sporting. O 2º comandante era o tenente-coronel Nogueira da Silva, detentor de várias comissões em África, que tinha um comportamento militarista do pior que se possa imaginar, similar ao daqueles que serviram nas tropas hitlerianas.
E de facto a situação naquele quartel era muito complexa. Os instrutores, quase todos capitães quase todos da especialidade de Administração Militar, com muitas missões em África, eram quem nos davam a maioria das muitas aulas que tínhamos e quase todos mostravam-se muito próximos de nós, cadetes, e procuravam-nos facilitar as nossas vidas, dando-nos muitas dispensas, sobretudo aos casados como era o meu caso. Mas o Nogueira da Silva era impenitente e muitas vezes não autorizou essas dispensas que eram registadas num pequeno papel com o nosso nome e número ambos escritos à mão pelos soldados escriturários. Eu fui vítima. Por ter entregado a arma, disseram, sem a bandoleira esticada, tive de passar um fim de semana no quartel, ainda por cima a tutelar a padaria desde as 4 da manhã.
Mas, vamos ao que importa. Eis que na madrugada de 16 de Março, por volta das quatro e meia da manhã o telefone tocou e do outro lado uma voz firme informou: “senhor cadete farde-se com a farda de trabalho, a 3, e dirija-se de imediato à EPAM”. Morava então em São Domingos de Benfica e de casa ao quartel era rápido pois apanhava a 2ª Circular. Assim tive de fazer deixando a minha mulher e depois os meus pais muito preocupados. Chegado ao quartel fui intimado a buscar a arma ao armeiro – uma bela G3 rara de coronha de madeira envernizada e o colete com os três ou quatro bolsos com os carregadores completos com cartuxos 9 mm e mandado sob as ordens de um tenente cabo-verdiano – cujo nome agora não lembro, excelente pessoa – para a estrada de Loures, numa camioneta velha Austin, de caixa aberta com capota de lona e todos nós, cadetes, sentados nos bancos corridos laterais com os pés em cima das caixas de madeira de pinho onde se embalavam os cunhetes de balas e granadas. O 16 de Março conhecido como o golpe da escola de sargentos das Caldas da Rainha ainda hoje não se sabe quem o determinou. Os capitães de Abril acusam Spínola, Costa Gomes que se manteve Chefe do Estado Maior das Forças Armadas mesmo depois da manifestação da “brigada do reumático” acusou os sargentos tão-só da escola de sargentos sediada nas Caldas da Rainha, mas que seriam apoiados pela cavalaria de Santarém …. Bem, o que foi certo foi termos ido lá para a estrada de Loures (conhecida como a estrada do Oeste) e na zona da Ribeira de Lousa, montámos no alto talude na encosta nascente, três ninhos de metralhadoras Breda e Browning, apontadas à curva fechada da estrada a norte de onde viriam as forças das Caldas. Ali estivemos sempre com ordem de tiro, ou seja, com as fitas de balas nas respetivas câmaras das metralhadoras pesadas. O tenente cabo-verdiano com um aparelho móvel de comunicação não parava um instante. Sem nada para comer, apenas com a nossa botija de água ali estivemos até perto das 18 horas. Nunca percebemos se iríamos atacar ou ir atrás de quem viesse. Acompanharam a companhia uns dois ou três alferes da Academia Militar que todos sabíamos que eram elementos da PIDE. Eram também instrutores da APSIC – a Ação Psicológica – que apenas tinha 6 instruendos. Curiosamente para essa turma vieram de “castigo” dois cadetes de Mafra do ciclo Janeiro-Março, sendo um deles António Reis – que depois de 25 de Abril foi secretário de Ramalho Eanes na RTP e muitos anos depis Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano nos anos 2005 e seguintes.
Regressados à EPAM fomos obrigados todos a pernoitar no quartel. Lá conseguimos acalmar a mulher e a família através do telefone de parede que existia cá fora no edifício das casernas. Só fomos autorizados a ir para casa dois dias depois. Faltou dizer que a semana anterior ao 16 de Março foi Semana de Campo em todos os quartéis de formação geral de praças, sargentos e oficiais milicianos. Jurámos então bandeira uns dias depois e fomos promovidos a aspirantes a oficiais.
Jurámos bandeira e fomos promovidos a Aspirantes a Oficiais Milicianos em 25 de Março de 1974. Entrámos em formação complementar na EPAM. A partir de 16 de Abril de 1974 começámos a auferir ordenado de oficial, cerca de 7 mil e 200 escudos. Um salário bastante bom e isento de Imposto Profissional. A formação complementar consistiu apenas em aulas teóricas. Passámos a ter de andar com o uniforme nº2. As aulas visavam ficarmos preparados para administrar unidades em serviço dito de soberania nas colónias. Os nossos professores eram todos capitães. Os dois principais o Capitão Gaspar e o transmontano muito conhecido Teófilo Bento – que conduziu o ataque aos estúdios da RTP, que eram nas antigas estações das antigas Lisboa Filmes e Tóbis, produtoras de filmes.
Nos dias anteriores ao Dia 25 de Abril, semana útil iniciada na 2ª feira, dia 22, os capitães nossos professores enganavam-se muitas vezes, faziam muitas pausas, sobretudo o Capitão Gaspar – que até tinha feito serviço na Manutenção Militar em Évora, que foi o segundo serviço mais importante de Intendência – perguntava as horas amiudadamente, tendo na quarta-feira 24 de Abril, fechado a aula às 11 horas porque era a hora almoço. Ora a hora de almoço era às 12h. Claro que foi depois que percebemos estas situações comportamentais. Não éramos bruxos nem estávamos no segredo das operações, como hoje alguns se querem fazer acreditar.
E foi mais um telefonema que recebi em casa – nós éramos obrigados a dar os nossos números de telefone – mas desta vez já os noticiários das 7 da manhã davam as primeiras notícias – por volta das 8 da manhã um camarada e me diz que viesse para o quartel. E assim fiz. Cheguei pelas oito e meia, o portão fechado não deixaram entrar o carro. Arrumei-o nas imediações e dirigi-me ao portão e o sargento não me deixou entrar a mim e a mais dois, pois com a farda 2, de sair à rua e que já usávamos depois de promovidos, não podíamos entrar. Fomos a nossas casas vestir a farda 3, regressámos já entrando com os carros. O camarada quando me telefonou disse-me para levar a farda 3, mas não liguei. Entretanto Teófilo Bento c tinha tomado conta da RTP. A situação ainda não era segura. Já de farda 3 eu e mais uns vinte, com praças pelo meio, fomos reforçar aos dois grupos que tinham ido de madrugada para a antena de Monsanto. Fomos pelo lado de São Domingos de Benfica e dispuseram-nos em redor do edifício-restaurante (agora abandonado). Por volta das dez e meia, onze, uma coluna de Panhards da GNR, saída da Estefânia, do Cabeço da Bola começou a subir a rampa de Monsanto. Ficámos preocupados. Mas logo a seguir, para a nossa posição veio um destacamento dos fuzileiros navais e a GNR, já a meio daa subida para Monsanto deu meia-volta e voltou para trás. Não foi disparado um único tiro.
Regressámos à EPAM e o Capitão Gaspar, sempre muito civilizado, mandou os casados para casa com a ordem de comparecermos e estarmos atentos aos nossos telefones. Éramos oficiais, aspirantes, é preciso perceber. No quartel ficaram cadetes e praças, pois era ali que se fazia o pão muitos outros abastecimentos.
O que veio a seguir toda a gente sabe e não interessa estar a falar sobre isso. A mim, se quiserem sabe, por ser oficial velho de quase 29 anos, nos dias a seguir a 25 de Abril, 5ª feira, fui várias coisas. Uma delas oficial à porta de armas, conjunto do portão de entrada e também da prisão. Recebi um dos oficiais coronéis que havia sido deportado para a Ilha Terceira, no seguimento do 16 de Março – infelizmente esqueci o seu nome, foi posteriormente presidente dos Belenenses – não esqueço o seu contentamento e a grande conversa que tivemos. Devo-lhe o facto de ele ter intercedido para que depois eu tivesse feito serviço nas Janelas Verdes. Entretanto tive de ser carcereiro (por 3 dias). Recolhi o diretor do Diário de Notícias. Lembro bem porque tive de mandar com viochene a prisão que era um espaço tenebroso com uma cela única e instalações sanitárias tudo menos sanitárias. Perguntei ao fulano o que desejava ler (jornal), pediu-me o Expresso. E agradeceu-me ter podido ver a mulher e uma filha, embora à minha vista no meu gabinete à porta de armas.
Uma semana depois houve ordem superior para o libertarmos. Recebi agentes da Pide e também das armas que entregavam, belíssimas pistolas Walter de porte pequeno, mas de 9mm. Nunca, como outros, fiquei com alguma. Critiquei isso sempre, mas muitos locupletaram-se com armas dos Pides e dos outros do quartel da Graça – como se chamavam esses???? Legionários …. Esses não havia ordem para prender. Os Pides sim mas logo a seguir vinham os fuzileiros buscá-los e levá-los para a Penitenciária e depois creio, alguns, para Caxias.
Acabo fazendo nota que logo a seguir ao 25 de Abril começaram a aparecer e a indisciplinar os soldados praças elementos do MRPP e de outras organizações políticas.
Mas já não vivi essas ações a não ser depois no Regimento de Artilharia 2, Serra do Pilar para onde fui destacado para formar PINT – pelotão de intendência – para incorporar o Batalhão 6220, destinado a Angola no dia de Natal de 1974, mas que por razões que não vêm ao caso nesta data histórica, acabei por ser substituído. Lá apanhei o 28 de Setembro. Mas isso é para outro dia contar, que vale a pena. A alegria do 25 de Abril descambou para indisciplina, para o reles aproveitamento da liberdade e não fosse Mário Soares estávamos outra vez sem poder falar nem ter liberdade para dizer o que pensamos.
Acabei o serviço militar no Hospital Militar de Infetocontagiosos HMDIC em pleno Gonçalvismo, o 11 de Março passei-o totalmente ao lado. Ali fiz serviço de segurança. Era um hospital novo com poucos anos, bem equipado. Hoje, quanto sei, abandonado. Naquele hospital estavam internados oficiais e soldados cubanos apanhados pela Peste Negra. A proibição era total de entrada a qualquer pessoa que não obedecesse ou não tivesse precisa autorização. A ordem era mesmo atirar a matar a quem desobedecesse. Foram dias para esquecer.
Desculpem o tempo que vos tomei.
Este foi o meu tempo do 25 de Abril.
Vila Viçosa, CECHAP, 24 de Abril de 2023